Há basicamente três tipos de divergências: (1) divergências claramente irreconciliáveis; (2) divergências minimamente reconciliáveis; e (3) divergências apenas aparentes, que são inexistentes quando se olha para além da fumaça da discussão. Por incrível que pareça, o terceiro tipo é o mais comum, sobretudo nas redes sociais.
Há muita gente que digladia-se nas redes sociais em torno de divergências que, na verdade, não existem, pois são apenas fruto de confusão em torno do significado de um termo ou até mesmo, em casos mais raros, de mero preconceito em relação a uma nomenclatura. É aquela situação em que ambos os lados defendem substancialmente a mesmíssima coisa, mas entram em conflito por causa de uma divergência quanto ao entendimento de um termo.
Exemplo: “Não sou arminiano, sou bíblico”. Aí você pergunta ao irmão em Cristo qual o posicionamento dele em relação aos 5 pontos da mecânica da Salvação e ele te entrega os 5 pontos do Arminianismo. Ou seja, na verdade, ou ele não sabe o que é Arminianismo de fato (provavelmente influenciado pela propaganda calvinista de que Arminianismo é Semipelagianismo) ou ele simplesmente tem preconceito em relação a “rótulos”. Sem falar que se dizer bíblico é algo que qualquer teólogo cristão de qualquer ramo do Cristianismo faz, até mesmo o católico.
Outro caso: “Não sou arminiano, sou pentecostal” - como se ser pentecostal significasse necessariamente não ser arminiano. Aí você faz aquela mesma pergunta e tem como retorno outra vez os 5 pontos do Arminianismo. Nesse caso, a causa pode ser uma daquelas duas do caso anterior ou ainda a crença de que o termo “Arminiano” significa uma pessoa que concorda com todo tipo de opinião que Armínio eventualmente possa ter tido em relação a qualquer outro assunto teológico, quando o termo “Arminianismo” é usado exclusivamente para se referir a uma compreensão a respeito da mecânica da Salvação à luz da Bíblia que apenas recebe esse nome como homenagem ao fato de o teólogo Jacó Armínio ter se destacado em seus dias na defesa da essência desse entendimento, do qual ele sequer foi pioneiro em esposar. Havia, por exemplo, no protestantismo do século 16, mais de cem nomes “arminianos” antes de Armínio, alguns dos quais ele cita como sua inspiração. Sem falar de Pais da Igreja “arminianos” (Para saber mais, veja meu livro “Arminianismo - A Mecânica da Salvação”, CPAD).
Toda essa introdução é para dizer que esse caso de divergências aparentes, sem sentido, com base apenas em confusão em torno de significado de termos, se repete outra vez, desta feita em relação à nomenclatura “Hermenêutica Pentecostal”.
Amados irmãos, infelizmente, ainda vejo aqui e acolá algumas confusões absolutamente desnecessárias em relação ao termo Hermenêutica Pentecostal, confusões estas que simplesmente olvidam o significado óbvio e tradicional do termo. Lamentavelmente, ainda há irmãos que não entenderam o significado dessa expressão, insistindo na ideia de que falar de uma Hermenêutica Pentecostal significa necessariamente aludir a um novo método de intepretação da Bíblia, quando Hermenêutica Pentecostal, como já disse, nada mais é do que uma referência à contribuição pentecostal à matéria de Hermenêutica Bíblica, nada mais. Será tão complicado entender isso? Não é uma referência à criação de um novo método de interpretação.
O que há, sim, como também já disse reiteradas vezes, são alguns teólogos pentecostais progressistas, os quais são minoritários dentro do pentecostalismo, que, mais recentemente, após o desenvolvimento da Hermenêutica Pentecostal, propuseram ir além, defendendo uma Hermenêutica Pentecostal que rompesse com os métodos tradicionais de interpretação do texto bíblico. Logo, é absurdo querer sequestrar esse termo tradicional para fazê-lo, à força, significar agora, apenas e tão somente, o que esse grupo minoritário esposa. Esse grupo propõe UM OUTRO TIPO de Hermenêutica Pentecostal, a qual não é a posição ortodoxa nem majoritária dentro do pentecostalismo. A proposta deles não é “A” Hermenêutica Pentecostal - ou seja, a Hermenêutica Pentecostal tradicional (Desculpe “gritar” com as palavras usando maiúsculas, mas parece que às vezes é necessário). A posição deles não é, por exemplo, a de Stanley Horton, William Menzies, Howard Ervin, Anthony D. Palma, Roger Stronstad, Robert Menzies, Gordon Anderson, deste irmão que vos fala etc.
Se isso até agora não ficou claro para algum irmão (se é que isso é possível), vou ser o mais elementar que eu posso.
Pra começar, hermenêutica não é método. Hermenêutica é uma referência apenas ao trabalho de interpretação do texto. Esse trabalho pode ser feito pelo método A ou pelo método B. Logo, o próprio termo “Hermenêutica Pentecostal”, em si, não implica uma referência a um método pentecostal exclusivo e independente de interpretação da Bíblia.
Por outro lado, em segundo lugar, quando se fala de “Hermenêutica Pentecostal”, se está obviamente falando de algum diferencial no trabalho de interpretação da Bíblia empreendido por pentecostais. O termo não pode ter outro significado. Ele não pode significar uma mera referência a protestantes pentecostais apenas interpretando a Bíblia, sem trazer nenhuma contribuição à Hermenêutica Bíblica, pois isso não faria o menor sentido. Afinal, se não há nenhum diferencial entre o trabalho hermenêutico do teólogo pentecostal e o trabalho hermenêutico do teólogo tradicional de qualquer outro ramo do protestantismo, não haveria mesmo de se falar de “Hermenêutica Pentecostal”. É uma questão lógica. Acontece, porém, que os teólogos pentecostais cunharam esse termo décadas atrás justamente para ressaltar que há um diferencial, há uma peculiaridade. O termo “Hermenêutica Pentecostal” existe e foi criado justamente para dizer: “Os pentecostais têm um diferencial em seu trabalho hermenêutico; eles fizeram e estão fazendo diferença nessa matéria, enriquecendo a ciência da Hermenêutica Bíblica”. E essa rica contribuição, repito, não é a criação de um novo método de interpretação, mas um enriquecimento e um aperfeiçoamento da metodologia tradicional de interpretação do texto bíblico, que é a metodologia que sempre foi usada pelos pentecostais.
Ou seja, Hermenêutica Pentecostal é uma alusão às peculiaridades do trabalho hermenêutico dos teólogos pentecostais que trouxe nos últimos anos algumas importantes contribuições à matéria de Hermenêutica Bíblica. Esse é o significado tradicional do termo. A Hermenêutica Pentecostal trouxe novos insights e um aprimoramento de ferramentas ao modelo tradicional de interpretação do texto bíblico; ele não criou outro método de interpretação. Agora, se há teólogos pentecostais que rompem com os métodos tradicionais de interpretação da Bíblia, esses que o fazem estão rompendo com a tradição histórica da Hermenêutica Pentecostal. Como disse, não são maioria nem muito menos uma representação do todo, mas uma exceção; e não se pode transformar por decreto maioria em minoria nem minoria em maioria, nem muito menos exceção em regra e regra em exceção. Não se pode sequestrar, ressignificar e denegrir o significado intentado do termo tradicional “Hermenêutica Pentecostal” por causa dos descaminhos de uns poucos.
Em terceiro lugar, a contribuição dos teólogos pentecostais para a Hermenêutica Bíblica é inegável. Logo, dói ver irmãos que são contrários ao uso do termo “Hermenêutica Pentecostal” tratando esse termo como se não existisse essa contribuição (ignorando, propositalmente ou não, décadas de um trabalho sério e rico desenvolvido) ou como se ele significasse apenas “valorização da experiência” e, pior ainda, a sobreposição da experiência à Palavra, deturpando o que é tradicionalmente a Hermenêutica Pentecostal. Caros, a questão do importância da experiência no processo de interpretação do texto bíblico é apenas um dos vários pontos da contribuição da Hermenêutica Pentecostal à Hermenêutica Bíblica; e este ponto, na Hermenêutica Pentecostal tradicional, não tem NADA A VER com sobreposição da experiência à Palavra. Também não é - como sugerem outros irmãos que acham o termo sem sentido - uma repetição do princípio básico de que devo procurar vivenciar em minha vida o que diz a Palavra de Deus e comprovar em minha experiência o que ela prescreve para mim. A contribuição hermenêutica pentecostal em relação à experiência não é isso, que nem seria contribuição.
Antes de explicar esse ponto, relembremos primeiro a variedade da contribuição pentecostal à Hermenêutica Bíblica: há, por exemplo, a contundente crítica pentecostal à classificação arbitrária de alguns textos bíblicos como sendo apenas descritivos, sem qualquer valor didático; há o resgate da importância do método indutivo ao lado do método dedutivo na interpretação do texto, em vez da valorização apenas do método dedutivo; há a defesa eloquente de que textos bíblicos narrativos também trazem teologia (e que hoje, após o intenso labor de eruditos pentecostais nas últimas décadas, é praticamente uma posição majoritária entre exegetas bíblicos); há a criação de uma criteriosa metodologia de interpretação de narrativas bíblicas, com um conjunto de regras enriquecedoras que fogem totalmente das propostas pós-estruturalista e desconstrutivista; há o uso sábio de certos recursos de crítica redacional e o uso inteligente da chamada analogia narrativa, os quais têm sido absorvidos por outros teólogos conservadores também; há o entendimento de que cada autor da Bíblia deve ser entendido dentro dos seus próprios termos e enfoques; há o maior uso da teologia bíblica para fins hermenêuticos e, finalmente, há a defesa de uma “epistemologia pneumática” como forma de fugir dos extremos do racionalismo e do misticismo na leitura do texto bíblico.
Este é um pequeno resumo. Detalhes sobre tudo isso podem ser vistos no meu livro “O Batismo no Espírito e as Línguas como sua Evidência” (CPAD), nos capítulos 11 e 14.
Como se vê, estamos falando aqui de questões e insights hermenêuticos desenvolvidos por pentecostais, não de Doutrinas Bíblicas Pentecostais. Logo, é absolutamente equivocado dizer “Não há Hermenêutica Pentecostal, só Teologia Pentecostal”. Não, errado! Tal afirmação peca não apenas por não reconhecer a existência de uma rica Hermenêutica Pentecostal, de uma contribuição pentecostal sólida à Hermenêutica Bíblica nas últimas décadas, mas também por esquecer que a Teologia Pentecostal é fruto de uma Hermenêutica Pentecostal – hermenêutica esta que em seus primórdios já usava intuitivamente muitos desses princípios e que, com o passar dos anos, em seus embates com teólogos avessos ao pentecostalismo, foi articulando-os melhor e incorporando também novos recursos e insights a eles; e sempre mantendo-se dentro do Método Histórico-Gramatical.
Assim como os teólogos protestantes dos primeiros séculos de Protestantismo foram responsáveis pelo enriquecimento e melhor desenvolvimento do método que posteriormente receberia o nome de “Método Histórico-Gramatical”, os pentecostais nos séculos 20 e 21 são responsáveis por uma nova contribuição dentro desse método.
Aqui é importante lembrar: os reformadores não inventaram o Método Histórico-Gramatical; eles apenas o resgataram em seus dias e foram responsáveis pelo seu aprimoramento. O que convencionou-se chamar, séculos depois da Reforma Protestante, de “Método Histórico-Gramatical” não é um método inventado pelo Protestantismo, mas, sim, um método que foi resgatado e burilado pelos teólogos protestantes dos primeiros séculos, e que, nos últimos dois séculos, sofreu a influência do Racionalismo, chegando, inclusive, a gerar o chamado Método Histórico-Crítico, além de contaminar o trabalho de teólogos protestantes tradicionais que usavam o Método Histórico-Gramatical. Logo, o labor teológico pentecostal foi importante também porque serviu até mesmo para tirar entulhos racionalistas que contaminaram o uso do Método Histórico-Gramatical na Hermenêutica Protestante tradicional nos últimos tempos.
Inclusive, uma dessas contribuições do pentecostalismo contra os entulhos racionalistas foi justamente a ênfase na “simplicidade de ler o texto [bíblico] como modelo para a nossa vida, sem a ansiedade sobre o milagroso ou como tudo se encaixa nos sistemas teológicos complexos [predeterminados]”, ou seja, sem pressupostos racionalistas afetando a elaboração teológica (isto é, mais ênfase em teologia bíblica do que em sistematizações teológicas, que devem vir depois) e enfatizando a necessidade de o crente fundir “os horizontes da promessa bíblica e da experiência contemporânea” (MENZIES, Robert, “Pentecostes – Essa História é a Nossa História”, CPAD, 20116, pp. 11 e 23). Ou seja, uma ênfase em se ler aquilo que a Bíblia afirma sobre a Igreja Primitiva como sendo válido para os nossos dias, como algo que pode e deve ser testado e experimentado hoje e é modelo para nós hoje, algo que pode e deve ser atualizado em nossas vidas, ajudando, assim, a romper com entraves internos racionalistas na leitura bíblica.
Isso é o que significa valorização da experiência na interpretação do texto bíblico. Não é julgar minhas experiências individuais à luz da Bíblia, algo que todos sabemos (ou pelo menos devemos saber); nem é apenas buscar cumprir aquilo que a Bíblia mais diretamente prescreve para minha vida, o que também é óbvio. Trata-se de ler as histórias da Bíblia, sobretudo o que diz respeito ao Novo Testamento, que está mais diretamente ligado à nossa realidade hoje, não como textos meramente descritivos, mas como textos que estão nos dizendo algo para nossas vidas hoje, fundindo o horizonte do texto bíblico com a nossa vida hoje, de maneira que as histórias bíblicas devem ser interpretadas também como nossa história, e não vistas com distanciamento, como uma peça de museu sendo admirada e na qual algumas coisas nela podem servir para nós hoje enquanto outras não; como se aquilo tivesse sido escrito apenas para sabermos que um dia aconteceu e não como se o autor tivesse sobretudo a intenção de, ao narrar essas coisas, ensinar algo e especialmente nos dizer que tudo aquilo também está disponível para nós hoje; isto é, que podemos e devemos buscar e experimentar isso em nossas vidas. É um texto que existe não só para contar, mas para ensinar sobre experiências e que tem a intenção de incitar-nos a buscá-las e vivenciá-las. É dessa forma que eles devem ser lidos e entendidos, porque é dessa forma que eles se apresentam, como os teólogos pentecostais vão desenvolver melhor, de forma eloquente, durante as décadas, mas já tendo, de forma mais simples, defendido e vivido isso desde o início do pentecostalismo.
Como diz Robert Menzies, “essa história é a nossa história”. Ou como dizia o teólogo William Menzies ao falar do “princípio da verificação”, se está na Bíblia para a Igreja de Deus e eu sou parte da Igreja de Deus, devo e posso testar e experimentar isso. Em suma, não é julgar se minhas experiências são bíblicas - isso é uma coisa -, mas apreender, testar e viver as experiências bíblicas, as experiências espirituais da Igreja Primitiva. Não à toa, o Movimento Pentecostal, antes de receber este nome, era chamado de Movimento da Fé Apostólica, porque objetivava resgatar para os seus dias a realidade da Igreja Primitiva, o “Evangelho completo”. O próprio nome “pentecostalismo” é uma referência à experiência de Atos 2.
Mas, como estávamos dizendo, e este é o meu último ponto, o Método Histórico-Gramatical não é invenção protestante, nem muito menos propriedade de apenas um grupo histórico. Se volvermos nossos olhos para a teologia judaica primitiva, veremos que o chamado “Peshat” era o método predominante entre os judeus de interpretação da Bíblia hebraica no período de 4 a.C. a 2 d.C., e consistia na interpretação literal do texto bíblico, que era interpretado de forma não-literal apenas quando o texto indicava a necessidade de uma interpretação não-literal. Depois desse período, sob a influência especialmente do surgimento do método alegórico criado pelo rabino Filo de Alexandria (15 a.C.–50 d.C.) no primeiro século da Era Cristã, a Hermenêutica Judaica passou aos poucos a adotar quatro níveis de interpretação do texto bíblico, melhor desenvolvidos no período medieval: o Peshat (como vimos, o sentido literal), que agora passou apenas a ser o primeiro nível, sendo seguido pelo Remez (o sentido tipológico ou alegórico), o Drash (outros sentidos inferidos sutilmente por comparação entre textos ou palavras) e o Sod (o significado oculto, místico). Essa é a chamada Hermenêutica “Pardes” (um acrônimo aportuguesado dessas quatro palavras que designam esses quatro níveis).
Por sua vez, se volvermos nossos olhos para a Antiguidade Cristã, veremos que a Escola de Antioquia esposava uma interpretação literal do texto bíblico, também interpretando uma passagem bíblica de forma não-literal apenas quando o texto indicava a necessidade de uma interpretação não-literal. Teodoro de Mopsuéstia (350-428), “O Príncipe dos Exegetas Antigos”, um dos grandes nomes dessa Escola, defendia expressamente que se tinha que levar em conta na interpretação do texto bíblico o sentido das palavras nas línguas originais em que foram escritas, o estilo literário e o contexto histórico da passagem.
Como sabemos, no final da Antiguidade, a Escola de Antioquia acabou perdendo terreno para a Escola de Alexandria, adepta do método alegórico, o qual foi predominante na Cristandade até o advento do movimento reformador, quando – em ordem cronológica – John Wycliffe, John Colet e depois Melanchton, seguido por Lutero (por influência de uma palestra de Melanchton) e, logo depois, Zwinglius, Calvino e John Knox passaram a desenvolver o que seria batizado muito tempo depois deles de “Método Histórico-Gramatical”, o qual foi melhor desenvolvido nos séculos seguintes à Reforma e CONTINUA sendo burilado ainda hoje, com grande contribuição pentecostal nesse sentido nas últimas décadas.
Em suma, o Método Histórico-Gramatical é usado por teólogos conservadores reformados e não-reformados, isto é, por luteranos, calvinistas e arminianos; por pentecostais e não-pentecostais. Ele não é propriedade de nenhum desses grupos e tem sido burilado durante o tempo pelo labor de teólogos de todos esses grupos. Amém por isso!
CRÉDITOS
Por Silas Daniel, via Facebook.
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