Por: Alderi Souza de Matos
Atualmente está na moda ser de esquerda. Isso ocorre tanto na Europa e nos Estados Unidos quanto na América Latina. Essa posição é a predileta entre os intelectuais, acadêmicos e artistas latino-americanos. Até um tempo atrás, a defesa dos pobres oprimidos era a principal bandeira da esquerda. Hoje o foco se ampliou para incluir as minorias em geral, como os homossexuais, bem como a legalização do aborto e outras agendas. Muitos cristãos se consideram de esquerda. Isso é problemático por causa de certas conotações que esse conceito possui e das manifestações concretas que tem assumido na história.
“Direita” e “esquerda” são termos que identificam posições políticas e ideológicas teoricamente antagônicas. Essas designações surgiram na Revolução Francesa, em fins do século 18, quando, na Assembleia Nacional então reunida, os defensores da autoridade real (clero e nobreza) se posicionaram do lado direito da assembleia, enquanto que os defensores da supremacia do parlamento (representantes do Terceiro Estado ou o povo) se colocaram do lado esquerdo. Assim, o primeiro termo passou a designar os mantenedores do “status quo” e o segundo, os revolucionários e contestadores.
Mais de um século depois, graças a outra revolução, desta vez na Rússia, a esquerda veio a ser identificada com o comunismo ou socialismo, em sua luta contra o capital e em defesa dos trabalhadores. Essa ideologia tinha algumas características distintivas: otimismo quanto ao ser humano, ou seja, o homem como um ser naturalmente bom; racionalismo utópico — crença na capacidade da razão para construir uma sociedade ideal; determinismo histórico — a história é condicionada por forças econômicas e evolui inexoravelmente para um fim; igualitarismo e socialismo — luta pela eliminação das distinções sociais e da propriedade privada, almejando uma sociedade sem classes.
O século 20 testemunhou o fracasso do “sinistro” experimento socialista, gerador que foi de um grande número de mazelas: ditaduras cruéis e opressoras, novas formas de elitismo e concentração de riquezas, estatismo, burocracia e corrupção, ineficiência administrativa, violação extensiva dos direitos humanos, práticas antidemocráticas (partido único, ausência de eleições, supressão de liberdades públicas). Isso sem contar os horrendos crimes contra a vida praticados na União Soviética, na China, no Camboja, na Coreia do Norte, em Cuba e outros países. Apesar dessas distorções e fracassos clamorosos, muitas pessoas continuam fascinadas pela esquerda com suas propostas socializantes.
Os cristãos não devem se comprometer com a agenda esquerdista em primeiro lugar porque o socialismo tem uma cosmovisão conflitante com a fé cristã. A esquerda histórica é radicalmente materialista, vê o mal somente nas estruturas econômicas e sociais, propõe como meio de redenção a transformação, mesmo que traumática, da sociedade. Isso vai contra tudo o que o cristianismo bíblico e histórico tem aceito ao longo dos séculos. Do ponto de vista cristão, o socialismo subestima a tendência do ser humano para o egocentrismo, para a sede de poder, para a autoglorificação, como se vê em tantos líderes e movimentos dessa corrente.
Outra razão pela qual os cristãos devem ser cautelosos em assumir compromissos com a esquerda tem a ver com a ética, com os valores. As ideologias de esquerda são notórias por seu relativismo moral (“os fins justificam os meios”). Um bom exemplo é o Brasil atual, no qual o partido dominante convive placidamente com a corrupção em nome da “governabilidade” e o ex-presidente, em troca de uns parcos minutos adicionais no horário de propaganda eleitoral, faz aliança com um dos políticos de pior reputação do país, contra o qual dirigiu as mais acerbas críticas no passado.
Por último, existe a questão da lealdade suprema do cristão. Assumir compromissos viscerais com sistemas, líderes e regimes político-ideológicos é mais uma forma de idolatria entre tantas que disputam a supremacia no coração humano. É exatamente por causa desse conflito de lealdades (Cristo x César) que os cristãos estão entre os grupos mais hostilizados e perseguidos por regimes de esquerda ao redor do mundo. Quando um cristão se define como de esquerda, em certo sentido está compactuando com todo o sofrimento imposto aos seus irmãos por quase um século.
É claro que um cristão sempre pode dizer: “Eu sou de esquerda, mas isso não significa que tenho de concordar com toda a agenda socialista”. Pode-se argumentar que o esquerdismo evoluiu e significa hoje algo bem diferente do que aconteceu na União Soviética ou na China. Porém, permanece o fato de que as palavras são importantes e carregam o peso da história. Um cristão convicto não deve se identificar por um rótulo que concentra tantas associações negativas. É preferível deixar de lado essa autodescrição, sem abrir mão de um forte senso de responsabilidade social.
Rejeitar a esquerda não significa adotar a posição simplista de que basta converter os indivíduos e os problemas sociais serão automaticamente resolvidos. É importante o envolvimento dos cristãos na luta pela justiça social, pela melhor distribuição de renda, pelo combate à miséria, à exclusão e à exploração, contanto que isso seja feito a partir de pressupostos bíblicos e não ditados por qualquer ideologia política, seja ela de esquerda ou de direita. Como adverte o apóstolo Paulo: “Não vos amoldeis ao esquema deste mundo, mas sede transformados pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.2).
Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil. asdm@mackenzie.com.br
Fonte: Revista Ultimato, Edição 338
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